Com certa frequência, nos meses de verão, temos conhecimento de casos em que pessoas,nas margens de rios e riachos, que provem de cursos d’água com cabeceira em áreas de encostasde altos declives, são colhidas de surpresa por enxurradas inesperadas, vindo a morrer emconseqüência desse fato. Este fenômeno é conhecido pelo nome de “cabeça d’água”.Em diferentes setores da Serra do Mar este fenômeno ocorre, fato que é atestado inclusive pela existência na região de inúmeros rios identificados pelo nome de “Roncadores”, em alusão aobarulho emitido pelo deslocamento violente de grandes volumes de água.
Este fenômeno pode ocorrer em qualquer bacia de drenagem, quer ela esteja em suascondições naturais quer ela possua alterações provocadas pela ocupação humana. A ação daocupação humana em bacias de drenagem, via de regra, tende a intensificar a grandeza dessesfenômenos ou até mesmo faze-los aparecer em áreas em que antes não existiam. Esta açãointerfere principalmente na forma, no volume e na intensidade do escoamento das águas.
A Serra dos Órgãos, no Estado do Rio de Janeiro, constitui-se num desses setores da Serrado Mar, bastante predisposto à presença deste tipo de evento, cuja ocorrência, em diferentesintensidades, já foi detectada diversas vezes. Além do potencial inerente as suas característicasnaturais, somam-se a ele diversas condições favoráveis produzidas pela crescente ocupaçãohumana, capazes de deflagrar a ocorrência deste fenômeno.O objetivo principal deste trabalho é o de criar uma fonte acessível de informaçõespertinentes ao fenômeno “cabeça d’água”, que possa com sua divulgação contribuir para alertar,criar atitudes e ações preventivas.Em áreas de riscos ambientais é comum desenvolverem-se conhecimentos e ações, decaráter intuitivo, que previnam ou minimizem conseqüências. Isto se aplica de forma ampla àspopulações locais que convivem com essas situações. As pessoas que buscam chegar a essasáreas à procura, por exemplo, de lazer, quase sempre desconhecem a existências de riscos, o queas transforma potencialmente nas principais vítimas.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DO FENÔMENO
O fenômeno ocorre quando uma chuva localizada, de grande intensidade, projeta-se sobreuma bacia de drenagem e nela existam condições favoráveis ao rápido escoamento superficial,fazendo com que as águas concentrem-se em pouco tempo nos canais fluviais.Os declives elevados nas paredes dos vales adjacentes aos canais fluviais podem serconsiderados como os principais responsáveis pelo escoamento rápido das águas. Entretanto,outras condições direta ou indiretamente podem agir, de forma ativa ou passiva, para intensificar oprocesso. A presença de todas as condições favoráveis, dentro de uma mesma bacia dedrenagem, pode fazer com que haja ali maior freqüência de ocorrência do fenômeno ou até mesmofazê-lo assumir uma grandeza catastrófica.Além do declive podem ser enumeradas, entre outras, as seguintes condições quefavorecem o processo de escoamento superficial das águas pluviais: a presença de afloramentosrochosos que funcionam como superfícies impermeáveis; ocorrência de solos pouco permeáveis;presença de controles de estrutura geológica na rede de drenagem; fortes amplitudes de relevo;presença de colúvios com diferentes graus de permeabilidade; a forma da bacia de drenagem e opróprio arranjo da rede de canais principais; as relações de equilíbrio entre as formas do relevo eos processos geomorfológicos atuais; o nível de saturação de água do solo em função de chuvasantecedentes; o rápido empapamento da superfície do solo, no momento de uma chuva intensa,que inviabilize uma maior infiltração; a impermeabilização do solo pelas construções de valas egalerias pluviais que redirecionem e concentrem o escoamento pluvial; a presença de obstáculos,naturais ou não, que represem águas; descontinuidades nos valores dos gradientes dos canais dedrenagem e as suas próprias formas.
“Cabeça d’água” no Rio Soberbo
A bacia de drenagem do Rio Soberbo, em seu alto e médio curso localiza-se na Serra dosÓrgãos no Estado do Rio de Janeiro. Grande parte da área desta bacia encontra-se dentro doslimites do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Suas nascentes estão na borda superior da serra,seu vale, tanto no alto quanto no médio curso possui paredes com altos declives e seu perfillongitudinal, nessa área, desenvolve-se numa extensão relativamente curta (aproximadamente 5km), face a forte amplitude do relevo, cerca de 2000 metros, o que confere ao seu canal principalum elevado gradiente.A ocorrência do fenômeno “cabeça d’água” tem sido constatado com uma certa freqüêncianesta bacia.Através de relatos e observações empíricas foi possível chegar as seguintes constatações:os eventos ocorrem principalmente entre os meses de outubro a janeiro; a maior freqüência temsido nos meses de janeiro; a incidência de maior volume de água tem sido no mês de janeiro; ofenômeno acontece à tarde, dificilmente à noite ou pela manhã.As condições do tempo que favorecem o surgimento do fenômeno, ou mesmo seudesenrolar são percebidos de forma diferente em função da posição do observador, caso ele estejana porção superior ou média do vale.O surgimento das chuvas localizadas na Serra do Mar pode originar-se com a subida pelaborda da serra de ar quente e úmido, proveniente das áreas baixas, que vai se resfriando(aproximadamente a temperatura baixa 1º grau a cada 100 metros de altitude) e acaba porcondensar-se. Caso existam circunstâncias atmosféricas não dissipadoras e a ascensão do arquente e úmido for muito forte, a chuva pode apresentar-se com um temporal formador da “cabeçad’água”
.A Serra dos Órgãos é um desses locais. Em seu contato com os terrenos baixos litorâneosseu clima é quente e úmido, e em sua borda superior frio e seco.
a) Parte Inferior ou Média do Vale – O céu, na sua maior porção costuma estar limpo, atemperatura é elevada e o ar quente e abafado. Há intensa evapotranspiração e lâminas d’águasão observadas em qualquer superfície. As trovoadas ouvidas nesta região oriundas da formaçãode temporal na cabeceira são perfeitamente audíveis, dado as características da facilidade detransmissão do som, pela peculiaridade da disposição do relevo – o vale. A visão panorâmica parao topo do vale é excelente podendo se ver perfeitamente a formação de nuvens concentradas nascabeceiras. O início do temporal é visto claramente porque há condições de excelente visibilidade.Não foi observado até a presente data, o fenômeno “cabeça d’água” em períodos com tempoencoberto totalmente pro nuvens, ou chovendo regularmente, ou que não apresenta-se ascaracterísticas citadas no quadro inicial como período quase imediato a ocorrência do fenômeno.O barulho do deslocamento da “cabeça d’água” pelo canal principal pode confundido com osom de trovoadas. Não há necessidade de estar chovendo ou mesmo ter chuva intensa na área, ocanal fluvial principal comporta-se como meio sobre o qual escoa a “cabeça d’água”, provenientedas cabeceiras, traduzindo-se estes nos maiores perigos para as pessoas que inadvertidamenteestejam ali presentes.
b) Parte Superior ou Cabeceira do Vale – A formação de nuvens concentradas nesta regiãoaumenta até o movimento que é iniciada a precipitação, em larga escala e intensamente,crescendo rapidamente o volume d’água do rio principal que é engrossado pelo caudal em excessodos muitos afluentes secundários, direcionados para a calha principal. Esta massa d’água,concentrada em um espaço de tempo menor do que o que lhe permita fluir montanha abaixo,assume velocidade crescente, no seu percurso, arrastando no seu caminho, animais, pessoas,blocos de rocha, árvores ou qualquer outro obstáculo, não fixo. Geralmente, a massa d’água formauma “parede”, frente ou “cabeça d’água”, já tendo sido observadas situações em que ela atingecerca de 4,5 metros de altura. Sua duração nunca é superior a 4 horas, mas geralmente diminui deintensidade nas duas primeiras horas. As pessoas que se acidentaram em conseqüência daocorrência deste fenômeno relataram que encontraram as seguintes dificuldades: a) percepção doruído provocado pela “cabeça d’água” muito próximo do fato; b) dificuldade de se retirar do localdevido ao tipo de terreno, geralmente acidentado.